

Traficante que foi preso no Brasil duas vezes com milhares de quilos de cocaína e haxixe foge pela segunda vez do país. História que tem ele como pivô é tema de série de ficção da Netflix
Dia 6 de agosto deste ano, às 11h06, a Central de Monitoramento Eletrônico (CEME) no Rio Grande do Norte recebeu alerta de rompimento da tornozeleira eletrônica de um dos presos monitorados pelo sistema.
Após a data do rompimento, os funcionários tentaram contato com o monitorado e também enviaram alertas sonoros e vibratórios, para agendar uma inspeção no equipamento e analisar o motivo do rompimento. Nenhuma resposta.
No dia 8 de agosto, às 3h29, a tornozeleira descarregou completamente. Em 11 de agosto, a fuga foi comunicada à Vara de Execução Penal. Chegava ali ao fim mais um capítulo da história do homem que, possivelmente, foi o único preso da Cadeia Pública Dinorá Simas, em Ceará-Mirim, cuja história inspirou uma série internacional de ficção produzida pela Netflix.
Mas esse não é o fato que mais impressiona na trajetória deste italiano.
Antonino Giuseppe Quinci, 68 anos, ficou muito conhecido após o lançamento da série Mar Branco (Netflix, 2023), que em Portugal se chama Rabo de Peixe e é um sucesso na Europa. A história tem como ponto de partida um episódio real: em 2001, a costa da ilha de São Miguel, no arquipélago dos Açores, em Portugal, foi inundada por uma carga de mais de 700 kg de cocaína com grau de pureza acima de 80%.
A população local recolheu parte da carga. A polícia conseguiu recuperar cerca de 400 kg. Mas o resto jamais apareceu. Em dezembro de 2017, o jornal espanhol El País fez uma reportagem sobre o assunto. Na época, estimou o valor da carga em pelo menos R$ 150 milhões.
A comunidade mais afetada foi a de Rabo de Peixe, onde o pó mudou a rotina e teria gerado mortes e dependentes químicos. Só para dar uma ideia, na época, chegaram a vender copos com cocaína a 5 Euros. O caso também gerou lendas urbanas, como peixes empanados em cocaína e um campo de futebol demarcado pela droga.
A fuga ocorrida no Brasil é a segunda no país. E a quarta, no total. Ele já havia sido preso na Itália e em Portugal. Fugiu de ambos. No Brasil, em 2012, Antonino Giuseppe Quinci foi preso quando tentava levar em um veleiro 270 kg de cocaína para a Europa. Acabou condenado a 16 anos sob o nome falso de José Aníbal Salgueiro Costa Aguiar. Conseguiu fugir em janeiro de 2017.
Quatro anos depois, em setembro de 2021, ele foi preso novamente. Também em um veleiro, Antonino Giuseppe Quinci tentava levar para a Europa 632,65 kg de haxixe. A prisão aconteceu a cerca de 180 quilômetros de Fernando de Noronha. Ele foi trazido para o Rio Grande do Norte, onde foi condenado a cerca de 9 anos de prisão, em regime fechado.
O detalhe interessante é que não houve a ligação da condenação de José Aníbal (16 anos), com essa nova condenação de Antonino. Sendo assim, as condenações que, somadas, dariam 25 anos, ficaram pelos nove anos que nem foram cumpridos integralmente.
Antonino Giuseppe Quinci sempre teve bom comportamento na prisão. Como resultado disso, acabou conseguindo a progressão de pena para a prisão monitorada. Na opinião de uma das pessoas que mais conhece este personagem, o escritor açoriano Rúben Pacheco Correia, a fuga de Antonino agora não é uma surpresa.
“Acho que era previsível. Aliás, no livro, no capítulo do Brasil, chego mesmo a dizer que em relação à justiça brasileira e a Antonino Quinci, o crime compensa”, avalia. Rúben é natural de Rabo de Peixe, há dois anos pesquisa essa história e lançou o livro “Rabo de Peixe – Toda verdade”, considerado um best-seller.
Em janeiro deste ano, ele veio ao Brasil, inclusive, e conseguiu entrevistar Antonino na cadeia. Em entrevista ao NOVO, o escritor chama a atenção para o fato de que a Justiça brasileira não computou corretamente as penas atribuídas ao italiano.
“Pergunto-me como é que é possível a justiça brasileira ter descoberto que, afinal, José Aníbal, foragido, era uma identidade falsa de Antonino Giuseppe Quinci, reincidente no mesmo país pela prática do mesmo crime, e, não só não ter exigido o cumprimento da pena que lhe faltava – aproximadamente 11 anos – como não o acusaram de uso de identidade falsa no país, nem agravaram a pena por se ter evadido”, observa.
E acrescenta: “Com tudo isso, ainda é-lhe atribuída uma pena domiciliar com tornozeleira… Claramente que estavam à espera da sua fuga”.
Após a fuga de Antonino Giuseppe Quinci, deverá ser emitido um comunicado internacional, relacionando-o como foragido. Atualmente, ele se encontra como parte da droga que desaguou em Rabo de Peixe e sumiu sem deixar vestígios.
Em outubro próximo a Netflix vai lançar a segunda temporada de sua série de ficção que tem como ponto de partida o caso de Antonino Giuseppe Quinci. Também em outubro, deverá ser lançado o documentário de Rúben Pacheco Correia sobre o caso, pela CMTV, em Portugal.
“Também terá repercussão internacional, com parcerias que ainda não podemos revelar. O livro continua a ser um sucesso em Portugal, saiu em maio e já vai na terceira edição. Um best-seller. Esteve no top 10 das principais livrarias quase dois meses consecutivos. O objetivo é publicar o livro em outros países. Quero muito publicar no Brasil. Estou neste momento negociando editora”, conta o escritor.
Como você tomou conhecimento da história de Rabo de Peixe?
Sou natural de Rabo de Peixe. Nunca o escondi e até afirmo-o com muito orgulho. Nasci, cresci e vivo em Rabo de Peixe – embora agora passe algum tempo em Lisboa, tendo em conta o meu regresso à Faculdade. Cresci a ouvir que ser de Rabo de Peixe era ser diferente. E esta diferença não era positiva. Cresci a ler e ouvir notícias que davam conta de um Rabo de Peixe que eu não revia nas ruas por onde passava. Ao crescer, percebi que Rabo de Peixe sofria um estigma que não correspondia à realidade. Pensei que este estigma tivesse terminado. Mas, infelizmente, estava enganado. A série “Rabo de Peixe”, na Netflix, no Brasil “Mar Branco”, veio ainda alimentar mais histórias que fazem sentido à ficção e que não fazem de todo à realidade. Chamar “Rabo de Peixe” a uma série e dizer que é inspirada em acontecimentos reais, é uma responsabilidade muito grande.
É colocar o nome de uma comunidade em jogo e atribuir a esta toda a ficção que se possa criar a partir daí. Quando lemos que é apenas inspirada na realidade e quando estamos a ver a série não nos é dito o que é inspirado na realidade e o que é produto da ficção. Portanto, é legítimo o espectador pensar que toda a história é inspirada em acontecimentos reais e atribui-la a Rabo de Peixe. De certa forma revoltado com isso, e conhecendo a história desde criança, por se ter tornado quase numa “lenda popular”, decidi iniciar a investigação à volta do único acontecimento que a série se inspirou de verdade – a droga que deu à costa um pouco por toda a Ilha de São Miguel, reforço a ideia “por toda a ilha”, fruto de uma viagem de Antonino Quinci que não correu bem.
Se Rabo de Peixe serviu de pretexto para contar uma história de traficantes que a si não correspondia, então usei a história da droga do italiano para contar a verdadeira história de Rabo de Peixe. E cheguei onde nunca pensei chegar: aos protagonistas de toda a história real que teve lugar na Ilha de São Miguel em 2001. Descobri histórias incríveis que demonstram que a realidade, afinal, é bem mais dura do que a ficção. A investigação fez-me viajar até Itália e até ao Brasil!
Há quanto tempo você pesquisa essa história?
Sensivelmente dois anos. Como já referi, envolveu algumas viagens, ao Brasil inclusive. E um processo longo de autorizações. Refiro que o protagonista principal de toda esta história estava preso em Ceará-Mirim e, portanto, foi um longo processo para convencê-lo a colaborar conosco e, a seguir, para obter todas as autorizações para podermos gravar a entrevista dentro do estabelecimento prisional onde se encontrava.
Que avaliação você faz dessa história?
Este trabalho não é um romance. Não é uma obra de ficção, mas, sim, uma obra que procura mostrar a complexidade da história, com todos os seus lados sombrios. Além disso, há uma componente de investigação, de viagens, de encontros, que enriquecem o relato e o tornam uma espécie de mosaico vivo da nossa realidade, como aqui já afirmei. Este livro traz-nos novidades e grandes revelações. Conhecemos o lado de quem investigou e de quem fugiu. E mais: enquadramos o “italiano”, Antonino Quinci, no seu seio familiar. Não só falamos com ele, como falamos com a sua família presa na Sicília. Esta família dedica-se ao tráfico desde 1982 e, através desta investigação, concluímos que afinal a história dos Açores é um grão de areia na história desta família. Descobrimos, por exemplo, que Vito Quinci, sobrinho de Antonino que veio ajudar o tio a São Miguel, em 2001, tinha sido sequestrado com a sua esposa por um cartel da Colômbia – outra revelação – donos da droga transportada por Antonino, enquanto o italiano não aparecesse. Descobrimos, por outro lado, que a droga que deu à costa em São Miguel teve ligações a um atentado à bomba em Lisboa. Enfim, várias foram as histórias que encontramos, paralelas, e que transportam o incidente de 2001 para fora das barreiras geográficas dos Açores. Mas, como compreenderá, deixarei que seja o leitor a descobrir todas as revelações. Descobrimos, por exemplo, que Antonino mal saiu da prisão em Portugal rumou até ao Brasil com outro carregamento de droga. Que já fugiu duas vezes da justiça brasileira e foi apanhado duas vezes em flagrante no país. No fundo, a história que, para mim, começou em “Rabo de Peixe” nos Açores fez-me conhecer várias outras histórias que não imaginaria no inicio desta investigação.
Como foi a entrevista dele aqui no Brasil?
Foi uma experiência que me marcou profundamente. Estar na presença de alguém que, de uma forma ou de outra, foi protagonista de dores e perdas tão profundas, trouxe-me uma mistura de emoções difíceis de nomear. Enquanto entrevistador, nestas conversas que mantive, com Antonino e outros, tentei manter uma responsabilidade ética de escutar e de entender, mas também de não perder de vista a minha missão de denunciar e de revelar. Aquele encontro foi, acima de tudo, um exercício de coragem, de empatia e de honestidade perante uma história que precisa ser contada — por mais dura que seja. Cresci a ouvir falar do italiano como uma figura quase lendária. Tê-lo à minha frente foi o concretizar da história materialmente. Foi atribuir rosto e identidade a um homem que tentou sempre, durante toda a sua vida, fugir da sua própria identidade. Além disso, o facto de estar à minha frente algemado numa prisão tornou o clima da conversa ainda mais pesado. Foi emocionante, confesso.
Qual foi a revelação que lhe causou mais surpresa por parte dele?
No fundo, contou-nos a história toda, desde o seu início. Antonino Quinci partiu da Venezuela em 2001 com mais de 700 kg de cocaína a bordo, com destino à Espanha. Durante a viagem, sofreu uma avaria e foi forçado a aportar na Ilha de São Miguel. Contou-me que, inicialmente, tentou lançar a droga ao mar, mas não conseguiu. A sua pureza era tal que o produto começou a flutuar: uma linha branca que seguia o veleiro, capitaneado por ele, o que poderia chamar a atenção de algum avião que passasse ou das autoridades marítimas.
Assim, decidiu esconder a droga ao longo de toda a costa da ilha, evitando que chegasse à terra com um carregamento de tal envergadura. A restante história, como já sabe, é por si conhecida.
Na manhã seguinte, uma tempestade fez com que a droga começasse a dar à costa por toda a ilha — sobretudo na parte norte de São Miguel. E pessoas humildes, pescadores e pessoas normais, começaram a encontrar a droga nos calhaus e nas praias. A droga estava por todo o lado, ao desbarato, em grandes quantidades e em graus de pureza elevada. A partir daí, as histórias são muitas, como deve imaginar. Gente houve que morreu, outros que enriqueceram…
O que você acha da fuga dele recente aqui no Brasil?
Acho que era previsível. Aliás, no livro, no capítulo do Brasil, chego mesmo a dizer que em relação à justiça brasileira e a Antonino Quinci o crime compensa. Antonino já tinha sido preso no Brasil e com uma identidade portuguesa falsa. A prisão de “José Aníbal” – identidade falsa que utilizou na primeira apreensão – deu-se juntamente com outras cinco pessoas no dia 24 de agosto de 2012, numa operação da Polícia Federal, quando colocavam em prática um plano para transportar 270kg de cocaína para o estrangeiro, por meio de um veleiro ancorado no Porto do Trapiche, em Luis Correia. O veleiro, denominado WIZ, antes de aportar ali passou por Madagascar, Venezuela e Guiana Francesa.
Como podemos ler numa notícia a que tive acesso, depois de investigar no Brasil sobre esta nova identidade de Antonino que me surgiu, “Alessandro Pasanisi e José Anibal zarparam do Porto do Trapiche, ao meio-dia do dia 24, e foram presos em flagrante pela Polícia Federal, com o apoio da Marinha do Brasil, quando já estavam a 1.500m da costa marítima”.
Ainda de acordo com a mesma notícia, “José Aníbal Salgueiro Costa Aguiar, que utilizou documentação, conhecimento e habilidades de marinheiro para tornar possível a consecução do delito, foi condenado a 16 anos de reclusão e ao pagamento de 2.100 dias-multa”.
E agora questiono: 16 anos de prisão? Mas como é que Antonino – ou melhor, José Aníbal – cumpriu este tempo todo, se foi preso em 2021 numa outra operação em Fernando de Noronha? Será omnipresente? Deus da droga? Se pensar um pouco, irá perceber. Antonino voltou a fazer o que já tinha feito em Pisa e o que também fez nos Açores. Fugiu da prisão no Brasil. Antonino já tinha fugido de Itália e, depois dos Açores, voltou a fugir no Brasil, neste caso da Colónia Agrícola “Major César Oliveira”, no dia 2 de janeiro de 2017.
Pergunto-me como é que é possível a justiça brasileira ter descoberto que, afinal, José Aníbal, foragido, era uma identidade falsa de Antonino Quinci, reincidente no mesmo país pela prática do mesmo crime, e, não só não ter exigido o cumprimento da pena que lhe faltava – aproximadamente 11 anos – como não o acusaram de uso de identidade falsa no país, nem agravaram a pena por se ter evadido. Antonino voltou a cometer o mesmo crime quatro anos depois de fugir de uma prisão brasileira (apanhado na Ilha de Fernando Noronha com 632kg de haxixe em 2021) e, pelo mesmo crime, apanha uma pena privativa de liberdade de oito anos e nove meses de reclusão, ou seja, um valor ainda inferior àquele que tinha por cumprir antes de se tornar foragido. Parece-me a máxima comercial de pague um, leve dois. Neste caso, pagou uma pena e teve outra gratuita, gentilmente oferecida pela justiça brasileira. Com tanta impunidade, começo até a perceber a reincidência de Antonino.
Mais: com tudo isso, ainda é-lhe atribuída uma pena domiciliar com tornozeleira… Claramente que estavam à espera da sua fuga!
• Como está a questão da sua pesquisa, do seu documentário e de outros documentários sobre o assunto, e também da série da Netflix?
O meu documentário irá sair em outubro em Portugal, na CMTV. Também terá repercussão internacional, com parcerias que ainda não podemos revelar. A segunda temporada da série da Netflix sai a 17 de outubro. O livro continua a ser um sucesso em Portugal, saiu em maio e já vai na terceira edição. Um best-seller. Esteve no top 10 das principais livrarias quase dois meses consecutivos. O objetivo é publicar o livro em outros países. Quero muito publicar no Brasil. Estou neste momento negociando editora.
Fonte: Everton Dantas, do NOVO Notícias
Foto: TVI/Reprodução.
Tags: Artigos
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